domingo, 22 de agosto de 2010

Segurança interna, espionagem oficial e democracia

Escrevi nesse site, no mês de março do corrente ano, dois artigos discutindo a questão da violência política nos países da América Latina, sobretudo nos do cone Sul.  Argumentava então, que existia uma política deliberada no sentido de forçar um esquecimento sobre os horrores e crimes praticados pelas ditaduras militares. Discutia ainda que era preciso que os arquivos da ditadura, à exemplo do que ocorreram com os das Delegacias Especializadas de Ordem Política e Social (DOPS), fossem abertos e colocados à disposição da sociedade, pois assim, entidades de direitos humanos e pesquisadores poderiam jogar luzes nesse passado obscuro da nossa história recente.
Essa tese, defendida por todas as entidades de direitos humanos do país, deve ganhar um novo alento, principalmente agora que veio à tona novas evidências de que o Estado continua com um permanente sistema de inteligência, sob a responsabilidade do Exército brasileiro e centrado no Gabinete da Segurança Institucional, órgão vinculado diretamente ao Palácio do Planalto. 
Refiro-me aos fatos narrados, recentemente, pelo jornalista da Folha de S. Paulo, Josias de Souza, que revelou documentos secretos obtidos por aquele jornal, onde o Exército continua praticando uma política de inteligência que admite "arranhar direitos dos cidadãos", além de classificar os movimentos sociais como “forças adversas”. Mais do que isso, para o Exército, movimentos populares como o MST se equiparam ao “narcotráfico e ao crime organizado”, numa tentativa de criminalizar os movimentos sociais e torná-los forças que precisam ser conhecidas, combatidas e "eliminadas". São os velhos sujeitos “indesejáveis” do Estado Novo e da Ditadura Militar. Os documentos recuperados pelo matutino paulista nos mostram, pela primeira vez, desde o processo de redemocratização do país, os subterrâneos da máquina de espionagem do Exército.
Sabemos que em todo lugar do mundo, os Estados mantém serviços de espionagem.  Até as empresas se utilizam desse mecanismo. Vejam o recente caso dos grampos do BNDES, aliás realizados por velhos arapongas do extinto SNI. Nem os próprios partidos de esquerda são contra um Serviço de Inteligência. Mas o modelo precisa ser diferente: apartidário, que não controle o cotidiano dos cidadãos por suas atividades políticas e que seja submetido a um rigoroso controle do Congresso Nacional, sob o manto da sociedade civil.
No entanto, o que está acontecendo é exatamente o contrário. Mesmo com a extinção do SNI em 1992, o Estado não deixou de exercer atividades de controle sobre os movimentos populares e sociais e  continua “fichando” pessoas que possam ser consideradas nocivas à “ordem social”,  os velhos e difamados “subversivos”.
A reconstrução de um sistema de informação começou ainda no governo Itamar Franco, quando no dia 13 de junho de 1994 foi criada a Escola de Inteligência Militar do Exército. Essa escola tinha como objetivo modernizar a ação do próprio Exército, preparando-o para o novo momento histórico decorrente da "abertura política e da anistia" no plano interno, e da "hegemonia dos Estados Unidos", no campo internacional, principalmente após a derrocada do Leste Europeu. Para isso, como revela os documentos obtidos pela Folha de S. Paulo, a Escola de Inteligência deveria “reeducar velhos arapongas” e formar espiões para os novos tempos, com o objetivo de defender o “bem público, a salvação pública e a ordem pública”. Mesmo que para atingir esses objetivos, tivessem que “arranhar direitos dos cidadãos, numa espécie de arbítrio necessário”.
No ano de 1997, o governo FHC deu um novo passo, encaminhando projeto de lei ao Congresso Nacional, propondo a criação da Agência Brasileira de Informações (ABIN). O Congresso Nacional votou a matéria apenas no ano de 1999 e no dia 07 de dezembro, o Presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei No. 9.883/99, instituindo a ABIN e o Sistema Brasileiro de Informações (SISBIN). E mais recentemente, no dia 8 de maio de 2000, o Governo Federal publicou o Decreto No. 3.448/00, criando um Subsistema de Inteligência de Segurança Pública com o objetivo de coordenar e integrar as atividades de inteligência de todo o país, através de uma rede de informações. Caberá à rede, conforme fundamenta o decreto, “identificar, acompanhar e avaliar ameaças reais ou potenciais, além de promover a coleta, busca e análise de dados e de produzir conhecimentos que subsidiem decisões na esfera de inteligência dos governos federal, estadual e municipal”.  Não é mais nada do que a recriação do velho SNI com outro nome.
Atualmente são 541 agentes trabalhando nessa rede. Praticamente ninguém fica imune aos espiões do Exército. Conforme constatou o jornalista Josias de Souza, eles estão espalhados em todas as regiões do país e realizam espionagem política, econômica, empresarial e social. O Exército chega mesmo a classificar os jornais segundo a sua "posição partidária", "dependência do poder econômico" e "grau de influência exercido pelo governo".
No entanto, são os movimentos sociais quem são mais enfaticamente monitorados. Aliás, a criação do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (Decreto No. 3.448/00, de 08 de maio de 2000) que me referi acima foi realizado exatamente após o Governo Federal admitir que estava mal informado sobre o MST e sobre o movimento dos caminhoneiros. Para quem não se lembra, no início do mês de maio do ano 2000, militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ocuparam e acamparam em 14 prédios públicos por todo o país; e os caminhoneiros fizeram uma conturbada greve, ameaçando o abastecimento em todo o território nacional.  Na época o governo FHC avaliava que se existisse um “sistema de coletas de informações em todo o país” tanto a greve dos caminhoneiros como as ocupações do MST poderiam ser evitadas (FSP, 09 maio 2000).
Para se ter uma idéia de como esse sistema de espionagem trata os movimentos sociais, amparo-me nos exemplos divulgados pelo Exército através do General de Divisão Luiz Cesário da Silveira Filho, Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, no 07 de agosto de 2001, e publicado na Folha de S. Paulo no dia seguinte. Diz o general:
“O Exército, didaticamente, denomina da seguinte maneira os objetivos da busca de informações: a) "inimigo: mentor de uma ameaça externa; b) "forças adversas": os segmentos radicais infiltrados em grupos, movimentos sociais, entidades e organizações não-governamentais, de cunho ideológico ou não - atuando no país ou no exterior - com potencial para realizar ações ilegais que venham a comprometer a ordem pública e, até mesmo, a ordem interna do país”.
O general enfatiza ainda que é de suma importância compreender a diferença entre os termos "força adversa" e "inimigo", pois assim se pode estabelecer procedimentos, técnicas e equipamentos utilizados pelo Exército. Segundo ele, o objetivo em relação ao “inimigo” é neutralizá-lo, ao passo que em relação às “forças adversas” a conduta tem que ser outra.
No entendimento do Exército e da Agência Brasileira de Informações (ABIN), as “forças adversas” são constituídas, na maioria da vezes, “por brasileiros que defendem causas - que lhes parecem justas - com instrumentos que a opinião pública não reconhece como legítimos”. E não deixa de retomar o velho e usual chavão de que as organizações sociais e manifestações públicas são vítimas dos agitadores infiltrados que agem para manobrar a massa para os seus interesses políticos. “Normalmente, os anseios dessa parcela da população são explorados por lideranças que têm interesses e objetivos divergentes da massa manobrada, instigando-a à violência e à quebra das normas de convivência pacífica”.
O maior exemplo disso, o Exército busca no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), para qualificá-lo como “força adversa” símbolo. Diz o general, enfaticamente:
“Em verdade, a adjetivação aplica-se àqueles que, abrigados pelo movimento, atuam, de forma flagrante, à margem da lei e da ordem, defendendo uma estratégia revolucionária por descrer na via pacífica eleitoral, invadindo e causando danos a prédios públicos e propriedades privadas; obstruindo rodovias e pontes; agindo com violência física contra pessoas; incitando à desobediência civil e, portanto, colocando em risco a lei e a ordem pública”.
Daí que, para combater esses sujeitos “indesejados” a conduta tem que ser outra, mesmo que essa conduta arranhe os direitos constitucionais dos cidadãos, ao passo de incentivar a sua “eliminação”. E a democracia e a liberdade ainda respiram sufocadas!



ANGELO PRIORI

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